Um legítimo canavieiro
Existem pessoas que basta bater o olho e já dá para saber a sua profissão, parece que elas têm a vocação cravada no código genético que, por sua vez, transfere para suas características físicas e comportamentais aquilo que elas sabem fazer de melhor.
O atleta é logo identificado pelo seu porte físico, o médico por sua atenção e o chef de cozinha ao primeiro toque de um talher ou utensílio. O agricultor também não é difícil de ser identificado. Pela sua fala, simples e objetiva ou pela cor de sua pele, geralmente “surrada” de tanto sol, logo é possível saber que aquele profissional tem a vocação de levar alimentos para bilhões de pratos mundo afora.
Assim é o presidente da Canaoeste, Fernando dos Reis Filho, homem que traz junto ao sangue em suas veias uma boa concentração de argila, em parte herdada de seu pai – que tem o mesmo nome peso-pesado – por se tratar de uma das principais lideranças do setor, que tem seu nome na história como um dos responsáveis por transformar a Copercana, a Canaoeste e o Sicoob Cocred nas verdadeiras potências que são hoje.
Outra parte foi adquirida com a experiência do dia a dia no campo. Com ela conseguiu manter a resiliência necessária para continuar produtivo mesmo em tempos complicados como os últimos doze anos e que o setor ensaia uma saída.
A entrevista a seguir vai além de um texto sobre as principais perspectivas da liderança e sobre os assuntos que envolvem a atividade, ela mostra um grande exemplo de como é formado o pensamento de um homem do campo. Confira:
Revista Canavieiros: Na visão de um canavieiro, como foi o ano de 2019?
Fernando dos Reis Filho: Esse foi um ano razoavelmente bom, podia ter sido melhor, pois ao observar a produtividade média, ela acabou ficando muito parecida com a da safra passada. Isso porque o clima atrapalhou bastante, principalmente perante dois fatores: a forte estiagem do mês de janeiro e a geada de inverno.
Essas adversidades do tempo atrapalharam muito o planejamento logístico de colheita, fazendo com que os canaviais em que estavam previstos os cortes para o início da safra acabaram sendo colhidos, em alguns casos, somente em outubro.
Revista Canavieiros: O senhor teve problema com geada?
Reis Filho: Sim, eu tive problemas, mas no meu caso a colheita foi ágil e com isso consegui evitar que ela se prolongasse para as safras seguintes.
Em alguns lugares a colheita foi tarde, o que irá comprometer a cana comercial pelo menos para a próxima safra seguinte. Acredito que o efeito afetará o fornecimento de mudas, mas em termos de produção não.
Este ano está bem próspero em decorrência da chuva que está vindo. Quando chove é ano bom.
Revista Canavieiros: Contando com os filhos que atuam ao seu lado, qual foi a inovação mais recente ou importante que vocês colocaram em prática?
Reis Filho: Com certeza existe uma ferramenta que precisa ser muito divulgada, pois ela melhora o custo de reforma e também o desenvolvimento da cana, a meiosi.
Ela precisa ser usada inclusive pelo pequeno e médio fornecedor, já que entre os grandes ela está praticamente consolidada.
Nela fazemos o desenvolvimento acelerado de variedades novas, outro ponto que precisa ter uma ruptura de paradigma na nossa cultura é quanto à adoção de novas cultivares, é preciso sair da zona de conforto, ter ousadia.
Revista Canavieiros: Fale um pouco mais sobre a experiência em introduzir a meiosi em seu manejo, por favor.
Reis Filho: Para mim foi difícil. Já para o meu filho, que é agrônomo e está atualizado com as tecnologias, foi muito fácil.
Quando decidimos implantar o manejo, ele rapidamente acertou tudo e começou a plantar, com muita tranquilidade sobre o que estava fazendo, enquanto eu passei quatro meses angustiado até ter a certeza se ia dar certo ou não. Agora sei que é um negócio bom, aliás, excelente, a grande vantagem está na questão da muda.
Nessa temporada plantei cantosi em dezembro. Em junho utilizarei como muda para fazer a meiosi, e em março de 2021, desdobro e formo o canavial comercial.
Mediante essa estratégia, numa área de 15 hectares, estou plantando 0,2 de muda. Dessa forma tenho planta de primeira qualidade, sem doença, de ótima produção, ereta, ou seja, que aumenta as chances de ter uma safra boa.
Quando você começa a pensar no lado financeiro, aí que a prática se torna ainda mais atraente, pois usei 4 mil mudas para fazer essa cantosi – o que significa quase R$ 4 mil em investimento, o que será suficiente para preencher os 15 hectares que serão reformados.
Fora que continuo tendo a renda da cana, porque em 2020 irei colher e depois e entrar com a linha mãe, além do retorno do plantio da soja em rotação de cultura.
Contudo, é preciso fazer um planejamento minucioso e adotar ferramentas tecnológicas que realmente atendam à sua necessidade.
Revista Canavieiros: E quanto às práticas mais tradicionais, quais vocês mantêm?
Reis Filho: Um manejo deixado de lado que não abrimos mão é o preparo de solo, isso porque com a proliferação e surgimento cada vez maior de pragas como o sphenophorus e nematoides, arar e gradear é algo imprescindível.
Revista Canavieiros: Em decorrência da crise do setor, os produtores tiveram um desafio gigantesco em adotar soluções de adubos e defesa, que demanda um investimento considerável, ao mesmo tempo em que o preço da cana não é reajustado há quase duas décadas. Como o senhor enxerga essa situação?
Reis Filho: Se considerar o custo do trato “filé mignon” da cana-soca na área de abrangência da Canaoeste, ele fica na faixa de R$ 2,5 mil a R$ 2,6 mil. Contudo, dá para reduzir a conta até chegar em R$ 1,8 mil o hectare.
Com a instalação da crise, muitos produtores acabaram sendo obrigados a optar pela opção de manejo mais barata, economizando adubos e defensivos. No entanto, há um velho ditado que diz: “Quando a gordura é muita, haverá fartura”, então, uma cana com menos tratamento estará mais suscetível a doenças, pragas e ao mato.
Assim vivemos nos últimos anos um grande dilema, pois sabíamos que se investíssemos muito, haveria um risco iminente da renda não ser suficiente para dar lastro ao capital colocado na operação. Porém, ao apontar por uma safra mais econômica, a produtividade caiu.
Hoje em dia é muito comum ouvirmos o termo produtividade de três dígitos, mas sem previsibilidade de aumento de remuneração, informação primordial para termos segurança no investimento, não acredito que conseguiremos chegar a esse número médio.
Revista Canavieiros: Falando em remuneração, qual é a visão do senhor sobre a escolha em deixar a terra em pousio ou até mesmo o plantio de cana de ano, abrindo mão da rotação de cultura?
Reis Filho: Vejo o cultivo de soja e amendoim como uma excelente oportunidade para o produtor de cana porque ela é importante no sentido de renovação do solo. Não dá para plantar cana direto hoje em dia, pois o risco de sofrer com pragas de solo se torna demasiadamente alto.
Lógico que há também o retorno econômico, se observarmos a grande evolução nos preços, tanto da soja como do amendoim, pensando num recorte da última década, dá para ver que em anos que o clima não atrapalha, a remuneração é algo extremamente importante.
Para finalizar, tem a questão da fertilidade do solo, em que o novo canavial terá condições mais propícias para ser produtivo ao longo de muitos temporadas.
Revista Canavieiros: Qual o principal desafio do produtor de cana hoje?
Reis Filho: Acho que todo mundo precisa pensar em fazer a própria colheita, se não tiver condições de ter uma frente, pelo menos ter uma programação, um planejamento que realmente aconteça, é preciso ser dono do próprio nariz.
Precisamos ter a mesma independência que o sojicultor, o produtor de amendoim ou de milho tem, ou seja, eles seguem uma programação. Na cana, esse planejamento foi deixado de lado a partir do momento que a colheita mecanizada foi introduzida.
Revista Canavieiros: Mas qual a saída para os pequenos e médios produtores?
Reis Filho: No caso do pequeno e médio produtor é necessário aliar o planejamento das suas variedades com uma estratégia de colheita em bloco ou, então, constituir um condomínio.
Contudo, se nem essas duas atitudes forem possíveis de serem tomadas, no mínimo é preciso acompanhar o corte durante todo o tempo. Tem que ficar em cima da operação, pois é lá que será decidida a longevidade do canavial.
A grande maioria dos fornecedores não acompanha, se a colheita durar 24 horas é preciso se planejar e ter gente da fazenda o tempo todo. Só pela presença dessa pessoa já terá respeito pelos operadores de máquina, que passarão devagar e ficarão mais espertos quanto ao pisoteio. Essa presença precisa existir.
Outro ponto muito importante é quando terceiros forem entrar na propriedade para fazer o corte. Eles precisam lavar a máquina porque ela está vindo de outro canavial e pode estar infestada com semente de grama seda, mamona, podem trazer doenças.
O procedimento é simples. Antes de chegar, peça para lavar a máquina, o que leva meia-hora. Se precisar de mais capricho, dá para dedetizá-la e aí entra com uma máquina limpa dentro do canavial que recebeu um bom investimento para estar livre de mato e doenças.
Quem quiser fazer uma experiência, lave a máquina e deixe a sujeira que caiu no local. Daqui a seis meses, volte e veja a quantidade de sementeira e de mato que nasceu no lugar.
Revista Canavieiros: Está cada vez mais evidente a percepção de que o produtor de cana está mais individualista, ou seja, ele acha que tem condições de tocar a sua produção sem a ajuda de ninguém, o que enfraquece as associações e cooperativas. Como o senhor vê esse movimento?
Reis Filho: Eu não definiria como isolamento, mas fuga do problema. Ou seja, ele planta a cana e terceiriza todo o restante dos manejos. Uso como termômetro para concluir isso as reuniões técnicas, pois temos hoje um grupo de 2,5 mil associados e aparecem apenas dez. Levamos informações primordiais para o associado melhorar a sua produtividade, e a sensação que dá é que poucos estão interessados nisso.
Outro problema é a falta de comunicação entre eles. Muito disso aconteceu em decorrência de um processo sucessório malfeito como, por exemplo, numa área grande que foi dividida entre três irmãos e, ao invés de fazerem a manutenção da estrutura inicial com a gestão do negócio em família, tiveram uma forte queda na escala de produção, quando esta foi individualizada.
No caso da minha operação, estamos trabalhando num processo de sucessão e a minha maior preocupação é fazer os meus três filhos entenderem que precisam trabalhar juntos. Hoje, cada um administra um setor e se especializou na área e, se permanecerem juntos, tenho certeza que continuarão o negócio de maneira firme e até o ampliarão. Agora, se dividirem, ficará um espaço menor para todos, o que aumentará os custos em decorrência da queda na escala. Juntos, eles serão mais fortes para negociar com a usina, para comprar adubo, enfim, para tudo.
Revista Canavieiros: Quanto ao alto custo de arrendamento, o senhor enxerga uma solução para o problema?
Reis Filho: O alto custo do arrendamento prejudica muito as usinas. Acredito que essa situação será corrigida a médio prazo, pois se permanecer não dará sustentabilidade financeira para muitas unidades.
O que aconteceu e inflacionou demais o preço de arrendamento foi uma briga totalmente irracional por terra, em que muitas empresas para conseguirem o canavial fecharam contratos a preços totalmente fora da realidade.
Sendo assim, as usinas estão repensando a sua posição, focando em sua vocação industrial e deixando a parte agrícola para o fornecedor, pois para ela cuidar do canavial, precisa montar uma estrutura gigantesca que é cara e pouco eficiente.
Nesse cenário, já é possível ver uma movimentação de repasse de área para fornecedores e lógico que estão sendo escolhidos aqueles que conseguem dar segurança de que responderão com alta produtividade.
Revista Canavieiros: Então acredita que o repasse de áreas arrendadas pela usina aos fornecedores, o que já acontece no Triângulo Mineiro e Goiás, ganhará força na região de Ribeirão Preto, tida como a Faixa de Gaza?
Reis Filho: Se parar para analisar somos uma região tradicional dentro da cultura. As áreas de expansão foram formatadas num modelo planejado, é só ver que o raio de interferência das unidades industriais não são como aqui, onde há diversos casos de usinas praticamente vizinhas das outras.
Perante isso, o custo da cana pela concorrência da terra (arrendamento) e raio médio necessário para buscar a matéria-prima é maior se comparado com as regiões de expansão. Por outro lado, o custo do fornecedor é baixo e calculo uma diferença, em alguns casos, que pode chegar a 40% menor.
Diante dessa conjuntura, acredito que a usina tenha que estimular mais a compra de cana dos fornecedores ao invés de desenvolver o seu canavial próprio.
O fornecedor produz mais gastando menos e é remunerado menos do que o custo de produção agrícola da usina. Num exemplo por cima, o custo da cana da usina chega, em média, a R$ 120/t, enquanto que ela paga para o fornecedor R$ 80/t.
Revista Canavieiros: Qual a sua expectativa quanto ao RenovaBio?
Reis Filho: O produtor precisa brigar para conseguir a parte dele no RenovaBio porque quem está inserido no programa é apenas a unidade industrial, o fornecedor ficará abaixo do guarda-chuva da unidade.
Precisamos de uma definição, pois hoje o produtor está desamparado no assunto. Estamos dependendo de certas normas.
Revista Canavieiros: Qual será o posicionamento futuro do Consecana, na sua opinião?
Reis Filho: Vejo o Consecana como um pilar, uma referência de preço. Muitas usinas hoje estão comprando cana a um preço fixo, fechado, de ATR. Outras, estão dando subsídio no CTT (corte, transbordo e transporte), mas ele precisa ser melhor estruturado.
Um ponto de partida é atualizar o problema da defasagem. Temos o problema do bagaço que não saiu ainda, e hoje é uma fonte de recursos importante para as unidades industriais.
O Consecana é como uma casa cheia de puxadinhos e, no final, vira um labirinto que inviabiliza qualquer melhoria no preço irá impactar os contratos de parcerias que, em sua grande maioria, são baseados nele, se atualizar o preço, esses contratos atrelados ao Consecana ficarão impagáveis.
Revista Canavieiros: Quando a coisa perdeu o controle e virou essa bola de neve?
Reis Filho: Antigamente, o produtor tinha um valor de recebimento que o governo, através do IAA, definia e, no final do ano, vinha o ágio da cana. Então, se recebia R$ 80,00, no final do ano acabava vindo mais R$ 20,00 de ágio.
Mas, nessa época, o produtor pegava a cana e levava para a usina. Porém, com o passar dos anos, a usina começou a assumir esse transporte negociando o ágio, ou seja, começou a trocar o custo pelo ágio.
No fundo, se for feita uma atualização em relação à realidade de hoje, é muito do que aconteceu com os contratos de ATR fixo, em que a usina fala que vai pagar R$ 122,00 fixo, e acima disso ficaria a cargo do produtor buscar a cana ou não.
Então, com o passar do tempo, a troca passou do CTT pela qualidade, gerando queda na qualidade do produtor, o que eleva significativamente os custos industriais.
Acho difícil criarmos um outro índice. O Consecana é um bom sistema de formação de preço, só que precisa ser ajustado num intervalo específico de tempo, de pelo menos cinco em cinco anos.
Hoje nós estamos recebendo com base numa conta de quando a cana ainda era queimada.
Revista Canavieiros: Com uma provável volta dos preços mínimos do açúcar no mercado internacional e relacionando ao período de pujança do etanol, o senhor vê uma possibilidade do Consecana ser atualizado em um momento de bonança?
Reis Filho: Acho difícil vermos uma melhora significativa num curto prazo, isso porque ainda há muitas unidades com endividamento bastante alto. Por outro lado, há empresas com estrutura mais enxuta, sendo a maioria delas administrada por famílias que estão em situações melhores.
Mas se pensarmos a longo prazo, estamos olhando para a melhor conjuntura do setor antes da crise, pois no cenário anterior era completamente impossível que algo acontecesse. Nesse, já há, pelo menos, uma expectativa de boas novas.
O que é válido dizer é que o etanol, com a chegada do RenovaBio e também com o processo de fabricação dos carros híbridos, terá a sua demanda interna aumentada.
Agora precisamos ter uma política firme de governo que mantenha os projetos que estão rodando em implementação. Não podemos ficar lamentando a água que passou, pois ela não volta mais.
Há um tempo, eu e meus filhos estávamos estudando comprar mais terras fora do Estado, porém escolhemos modernizar a nossa infraestrutura para garantir um ganho de produtividade, ou seja, estamos apostando no futuro.
Revista Canavieiros: Então o senhor espera um 2020 positivo?
Reis Filho: Acredito que o ano será bastante positivo. Há um trem em alta velocidade e quem conseguir entrar nele colherá bastante frutos, porém, quem não se adequar será engolido.
Fonte: Revista Canavieiros
Por: Marino Guerra
Foto: Rodrigo Moisés